Uma certificação agrícola cercada de controvérsias: conheça a francesa HVE

A busca por maior sustentabilidade nos vinhedos vem ganhando espaço nas últimas décadas. E a França, como um dos três maiores produtores de vinho do mundo, está no centro deste debate. Parece existir um consenso de que os abusos no uso de pesticidas, herbicidas e fertilizantes sintéticos, tão comuns na agricultura convencional, não podem prosseguir.

No entanto, existe uma enorme controvérsia sobre qual rumo e velocidade tomar no sentido de vinhedos mais adequados a esta nova realidade. De um lado, há que aposte em uma busca mais objetiva de soluções mais sustentáveis, representado, sobretudo por aqueles que adotaram a agricultura orgânica ou biodinâmica. Nestes casos, existe uma renúncia completa do uso de herbicidas e pesticidas sintéticos, além de uma série de outras medidas.

De outra parte, ficam aqueles que optaram por um caminho com regras menos rígidas, onde alguns produtos, sobretudo pesticidas e herbicidas sintéticos, são usados em algumas situações. Na França, este modo de agricultura é chamado de lutte raisonée (que pode ser traduzido como luta racional), porém sem uma certificação específica. Foi dentro deste conceito que surgiu a certificação Haute Valeur Environnementale (HVE ou Alto Valor Ambiental, em uma tradução simples).

Histórico e funcionamento

Na década de 2000, o governo francês lançou uma série de iniciativas no sentido de buscar maior sustentabilidade, entre elas a Grenelle de l’Environnement. Este compromisso, assinado em 2007, culminou com uma série de novas leis no que diz respeito à proteção de meio ambiente. Dentro deste contexto, foi lançada em 2012 a certificação Haute Valeur Environnementale.

A certificação HVE é concedida a agricultores (não vale somente para a viticultura) individuais ou coletivamente (como cooperativas, por exemplo). É um programa voluntário e tem três níveis distintos. O nível um, o mais básico, considera simples conformidade com algumas normas ambientais, Já o nível dois inclui o cumprimento de boas práticas ambientais (biodiversidade, proteção fitossanitária, fertilização, gestão da água), com base nos princípios da agricultura sustentável.

Já o HVE nível três é o mais alto desta certificação ambiental agrícola e o único que permite a obtenção e uso do certificado Haute Valeur Environnementale. Neste nível, existem ferramentas de medição das práticas adotadas, com o objetivo de avaliar o desempenho agroecológico da propriedade agrícola. A certificação abrange todas as atividades da propriedade, como cultivo, reprodução e meio ambiente das áreas de plantação e dos animais.  O HVE nível três deve ser validado por auditorias, que podem ser gerenciadas coletivamente ou individualmente.

Busca por uma solução intermediária

A certificação HVE é considerada mais rigorosa no uso de produtos sintéticos do que a agricultura convencional, que em teoria, mostra mais contrapartidas ambientais (poluição da água, envenenamento de ambientes, etc). Por exemplo, a certificação HVE requer atenção à biodiversidade ou à gestão de recursos hídricos. No entanto, a HVE é muito mais flexível do que, por exemplo, a certificação orgânica.

Enquanto a certificação orgânica tem especificações definidas no nível regulatório europeu, a HVE é somente adotada na França. Além disso, a principal diferença é a permissão para o uso de fertilizantes químicos e pesticidas cujos impactos na saúde são conhecidos (câncer, problemas neurológicos e imunológicos, infertilidade). Além disso, a certificação HVE não adota normas de bem-estar animal.

Controvérsias

Há muita controvérsia em relação a esta certificação. E isso vem desde suas origens, com pressões de todos os lados. Logo no lançamento da proposta, houve uma reação adversa de câmaras de agricultura, institutos técnicos e sindicatos rurais, todos criticando o aumento das restrições e das exigências ambientais. Este lobby do setor agrícola lutou por dois anos e conseguiu relaxar as condições inicialmente propostas para essa certificação. 

Por conta deste relaxamento, as críticas se intensificaram do outro lado, que colocam em dúvida se realmente há alguma vantagem em buscar esta certificação. Há quem considere a HVE como green washing, expressão usada para rotular a iniciativa apenas como uma peça de marketing. O objetivo seria somente atender às demandas da opinião pública por uma agricultura menos intervencionista, sem, todavia, atacar a raiz do problema. Embora certificados, estes produtores ainda usariam produtos sintéticos que trazem riscos significativos, tanto para agricultores como consumidores.

Batalha jurídica

Um episódio marcou recentemente esta controvérsia. A associação Alerte aux Toxiques (AAT), liderada por Valérie Murat, publicou em setembro de 2020 um relatório contendo a análise química de 22 vinhos de diversos produtores franceses certificados HVE. A constatação de que foram encontrados resíduos de pesticidas (embora dentro da legislação) em todos eles (19 deles de Bordeaux) levou a uma forte reação do setor.

A CIVB, que cuida dos interesses dos produtores de Bordeaux, entrou rapidamente com uma ação na Justiça. O resultado foi a condenação de Murat (cujo pai faleceu de câncer após trabalhar 40 anos em vinhedos) e da associação, a uma multa de € 125.000. A justificativa é que o relatório causou danos à região vinícola de Bordeaux.

Fontes: HVE; Natura Sciences; Vie publique; Vitisphére; Le Monde

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