Um dos defeitos do vinho mais discutidos nos últimos tempos ainda não tem um nome “oficial” em português. Ele continua sendo conhecido pela expressão francesa gôut de souris (gosto de camundongo) ou pela sua versão em inglês, mousiness (características de camundongo). E, por conta dos termos usados, você já pode perceber que é algo nada agradável. Já pensou em um vinho com “pegada” de camundongo?
Esta associação com camundongo (ou rato) surgiu a partir de um dos descritivos aromáticos mais usados para descrever este defeito: gaiola de rato. Se você, porém, é como eu e jamais teve a experiência de cheirar ou mesmo lamber uma gaiola de rato, há outros descritivos mais familiares. Os principais são pele de salsicha, água de cozimento de arroz, milho, pipoca ou tortilhas. Agora que parece “um pouco” mais palatável, vamos tentar entender melhor este defeito?
Como identificar?
Curiosamente, este é um defeito que não conseguimos identificar, em geral, até que o vinho chegue a nossa boca. Ele não é perceptível no olfativo antes disso, e isso tem a ver com as propriedades químicas do vinho. Como ele tem um pH mais baixo (acidez mais alta) que o de nossa boca, este defeito aparece somente a partir do momento quando o pH do vinho sobe, em contato com nossa saliva. E aí, com os aromas se tornando voláteis, é que sentimos o tal cheiro de rato através do nosso retronasal.
Uma alternativa para detectar antes de degustar seria esfregar um pouco de vinho na nossa pele, pois isso também causa uma elevação do pH e liberação dos compostos voláteis. Obviamente, porém, esta é uma solução pouco prática, especialmente para quem degusta com frequência. Um ponto a lembrar também é que é mais comum sentir o defeito no final da garrafa ou nas últimas amostras de uma degustação, pois a interação constante entre os vinhos e a nossa saliva altera nosso pH bucal.
Outra particularidade é que nem todo mundo consegue identificar este defeito. Além das diferenças em termos de percepção de aromas, há a questão do nível pH de cada um. Estima-se que cerca de um terço das pessoas não seja apto a captar o defeito, não por falta de treinamento ou algo similar. A questão é que o pH de suas bocas não atinge o patamar necessário para que os aromas desagradáveis se tornem voláteis.
O que causa?
A causa do mousiness foi fonte de controvérsia por muito tempo. Muitas pesquisas seguem sendo realizadas, porém, ainda existem muitas perguntas não respondidas. Inicialmente, havia quem apontasse bactérias lácticas, como a Lactobacillus hilgardii, como as únicas causadoras. Por outro lado, havia uma percepção distinta, de que seriam fungos como Brettanomyces bruxelensis (que causa o brett) os catalisadores principais.
Porém, a detecção dos elementos químicos responsáveis pelo defeito mostrou um quadro muito mais complexo. São três elementos principais os responsáveis (com destaque para 2-acetyltetrahydopyridina), que podem ser chamados de piridinas. Eles são criados sobretudo pela ação de bactérias lácticas, mas podem surgir também quimicamente (hiper oxidação) ou mesmo por reações de Maillard no processo de elaboração do vinho.
Algumas práticas no processo de vinificação aumentam de forma significativa a ocorrência deste defeito. Destas, a que gera maior preocupação é a vinificação sem utilização de sulfitos. Além disso, fermentações com alta proporção de sólidos, longo tempo de contato com as lias, pH mais altos em uvas e mostos, envelhecimento oxidativo e falta de clarificação ou filtração podem ampliar a incidência.
Ele é muito comum?
Anteriormente rara, a incidência deste defeito aumentou exponencialmente após o advento dos chamados vinhos naturais. Existem diversas pesquisas identificando doses elevadas de piridinas em uma proporção bastante significativa de vinhos deste segmento. Um levantamento realizado na França pelo Instituto Técnico de Agricultura Orgânica (Itab) com 255 viticultores orgânicos confirmou o aumento da incidência.
A pesquisa mostrou que 18% dos entrevistados a nível nacional disseram ter identificado o defeito em 2021, em comparação com 12% em 2020. Na região de Occitane, que inclui Bordeaux, 30% das vinícolas pesquisadas reportaram vinhos com mousiness em 2021, comparado com 14% em 2020. E a proporção é ainda maior entre os que vinificam sem sulfito: 46% em 2021, contra 27% em 2020.
Na mesma linha, uma outra pesquisa com 174 vinicultores naturais do Vale do Loire indicou que 62% deles identificaram o problema ao menos uma vez. Mais uma vez, a razão principal é a redução no uso de sulfitos e o aumento do pH das uvas, mostos e vinhos, por conta do aquecimento global.
Como evitar e como agir?
Do ponto de vista do produtor, há muito o que pode ser feito para reduzir a incidência de mousiness, sobretudo maiores cuidados durante processo de vinificação. O ponto central parece ser a decisão de usar ou não sulfitos. Para Nicolas Richard, enólogo do Institut Rhodanien, “mesmo que você tome o máximo de precauções, as adegas que vinificam sem sulfitos não estão imunes, especialmente porque não sabemos exatamente quais precauções eles devem tomar”. Além disso, como destacado anteriormente, algumas condições refletem também mudanças na qualidade das uvas, algo que o viticultor tem menor controle.
Já do ponto de vista do consumidor, pouco pode ser feito. Obviamente existe a opção de escolher vinhos de produtores onde haja menor incidência deste defeito. Porém, uma vez identificado o problema, as únicas opções são aceitar ou descartar o vinho. Ao contrário de outras falhas (como redução, por exemplo) não há volta. Um vinho com mousiness, assim com um vinho bouchonée, é, infelizmente, um caso perdido.
Fontes: Flawless: understanding flaws in wine, Jamie Goode; Vitisphere: Il n’y a pas que les bretts qui donnent au vin des goûts de souris; Vitisphere: Goûts de souris dans les vins : “le problème n°1 des caves qui vinifient sans sulfites
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