Sancerre: excelência com a Sauvignon Blanc, mas espaço também para a Pinot Noir

Sancerre, embora produza também vinhos tintos e rosés, é um nome inexoravelmente ligado à Sauvignon Blanc. Esta variedade atinge nos solos calcários desta denominações de origem francesa algumas de suas melhores expressões a nível mundial, com um estilo inconfundível. Seus melhores vinhos são considerados como referência para esta uva, que nas últimas décadas ganhou enorme projeção internacional.

Com uma longa tradição na viticultura, porém, Sancerre sofreu profundas transformações ao longo dos séculos. O domínio da Sauvignon Blanc nesta área é relativamente recente, refletindo a versatilidade do terroir de Sancerre. Sua posição geográfica, praticamente no centro da França, traz condições climáticas particulares e isso, somado ao perfil de seus solos e diferentes influências, resultou, ao longo da história, em grandes vinhos.

O vilarejo de Sancerre e seus vinhedos

Longa história

Embora não existam evidências definitivas, é muito provável o cultivo de videiras nas colinas ao redor de Sancerre ao menos desde a época romana. A primeira referência aos vinhedos da região, porém, data do século VI, mais especificamente na obra de Gregoire de Tours. O monge e escritor descreve não somente a abundância de vinhedos na região, mas também a qualidade de seus vinhos.

Cinco séculos depois, Rodulfus Tortarius, monge da abadia de Fleury, descreve um contexto similar. Na mesma época, Estevão I, o primeiro Conde de Sancerre, teria incentivado a viticultura na região, com ampliação da área de vinhedos. Durante os séculos que se seguiram, os vinhos de Sancerre ganharam fama entre os reis e a nobreza francesa, mais notavelmente no reinado de Henrique IV (1553-1610).

Este rei é conhecido pela sua preferência por vinhos tintos, como aqueles originários de Givry e de Auvergne. Isso parece dar pistas do tipo de vinho produzido em Sancerre nesta época, possivelmente tendo a Pinot Noir como variedade principal. A partir de 1642, com a construção do canal de Briare, Sancerre ganha acesso direto ao enorme mercado parisiense. A importância da vinicultura em Sancerre foi destaque também para Vincent Poupard em 1777, com uma descrição detalhada dos principais vilarejos produtores e dos vinhedos de maior qualidade.

Ápice no século XIX

O século XIX talvez tenha representado o ápice da vinicultura em Sancerre, ao menos no que diz respeito à área plantada. Abraham Malfuson descreveu detalhadamente os vinhedos da região, com ênfase tanto nos tintos (elaborados sobretudo a partir da Pinot Noir) como nos brancos (que contavam com a Chasselas como variedade principal). Porém, foi o trabalho da família Julien que trouxe a mais detalhada descrição de Sancerre na época.

Publicada em 1866, a obra Topographie de Tous les Vignobles Connus traz estimativas da área de vinhedos e da produção. Segundo os autores, os vinhedos do Cher, dentre os quais Sancerre, contavam com quase 11.000 hectares de vinhas plantadas. Sancerre seria, de longe, a maior das sub-regiões nesta estimativa, com a maioria dos vinhedos. A produção de vinhos tintos (200.000 hectolitros) nesta época seria quatro vezes maior que a de brancos (50.000 hectolitros).

Porém, a chegada da filoxera à região em 1886 iria alterar completamente este quadro. Somado à maior competição dos vinhos do sul da França, por conta da construção de ferrovias até Paris, o que se viu foi o rápido abandono dos vinhedos de Sancerre. Esta situação prevaleceu até o final da Segunda Guerra Mundial, quase 60 anos depois, quando a área plantada com vinhedos não ultrapassava 175 hectares.

Um novo foco

A lenta recuperação dos vinhedos de Sancerre após a devastação causada pela filoxera trouxe uma importante mudança. A uva predominante passou a ser a Sauvignon Blanc, substituindo a Pinot Noir a a Chasselas. São diversos motivos, entre eles a melhor adaptabilidade desta variedade aos porta-enxertos em solos de calcário e a maior regulamentação causada pela definição das denominações de origem na França. Há suspeitas que os tintos de Sancerre fossem engarrafados em outras regiões, o que cessou após a definição de regras mais estritas após a implementação das AOCs.

Os esforços para proteção dos vinhos na região ganharam corpo com a criação, em 1921, da Union Viticole Sancerroise, uma espécie de cooperativa de produtores locais. Em 1931 foi definido que o nome Sancerre somente poderia ser usado nos rótulos de vinhos elaborados a partir de uvas de áreas delimitadas ao redor do vilarejo, a partir de duas uvas: Sauvignon Blanc e Pinot Noir. A denominação de origem, considerando somente vinhos brancos, foi criada em novembro de 1936. Para rosés e tintos, a legislação foi aprovada somente em janeiro de 1959.

Recuperação e avanços

Mesmo apesar do forte êxodo da população local para as indústrias das grandes cidades após a Segunda Guerra, a produção de vinhos de Sancerre cresceu. Em meados da década de 1950 a área plantada de Sauvignon Blanc atingia 400 hectares, com mais 40 ha de Pinot Noir e 160 ha de outras variedades. Foi nessa época que muitos produtores passaram a engarrafar seus próprios vinhos e atuar de forma mais agressiva na divulgação, principalmente no mercado parisiense.

A década de 1970 representou um período de forte expansão, com mecanização, uso de seleção clonal e maior produtividade dos vinhedos, por conta do uso intensivo de produtos químicos. A maior rentabilidade, até por conta do forte crescimento das exportações, resultou em fortes investimentos em estruturas de produção na década seguinte. O foco, porém, parecia ser mais em quantidade do que qualidade.

Este quadro mudou desde então. A geada que praticamente aniquilou a safra de 1991 e a maior competição externa (os Sauvignon Blanc da Nova Zelândia passaram a inundar o mercado britânico – maior comprador de Sancerre na época) levaram a uma mudança na filosofia. Rapidamente o foco passou para melhor qualidade, com trabalho mais intensivo nos vinhedos, uso de seleção massal e menor intervenção na adega.

Localização e clima

Sancerre é a maior denominação de origem dos chamados vinhedos centrais do Vale do Loire, localizada praticamente no meio da França. O vilarejo de mesmo nome se situa a cerca de 200 quilômetros a leste de Tours e na mesma distância a oeste de Dijon, o que o coloca em um ponto intermediário entre as maiores áreas de vinhedos do Vale do Loire e a Borgonha. Em função de sua posição geográfica, conta com clima semi-continentral, com grande amplitude térmica.

A localização da denominação de origem Sancerre

Até recentemente, esta região situada na margem esquerda do Loire era uma área com menor ocorrência de geadas extremas (a exceção foi 1991). Porém, por conta do impacto do aquecimento global, este e outros fenômenos extremos têm se tornado mais comuns. Como boa parte dos vinhedos estão localizados em encostas (entre 200 e 400 metros de altitude), isso torna Sancerre mais vulnerável a estes fenômenos do que Pouilly-Fumé, por exemplo, que conta com menores altitudes.

Solos

Apesar de estar localizada na região geológica da Bacia de Paris e contar com solos predominantemente calcários, Sancerre apresenta três perfis distintos de solos. Aproximadamente 40% dos vinhedos, sobretudo aqueles em encostas mais íngremes na parte oeste da AOC, estão situados em solos chamados localmente de Terres Blanches. Assim como aqueles de Chablis, têm origem no período Kimmerigiano e trazem grande quantidade de fósseis de conchas marinhas.

Outros 40% dos vinhedos, sobretudo a leste de Sancerre e em menores elevações, contam com solos chamados Caillotes. São solos mais antigos e pedregosos, com origem no período Oxfordiano. Por fim, os demais 20% são descritos como Silex, contendo rochas mais jovens, mas também de origem marinha, que ficam acima dos demais solos, sobretudo a leste do vilarejo de Sancerre.

Sancerre AOC

A denominação de origem Sancerre conta com 3.025 hectares de vinhedos, espalhados por 14 municípios (communes) a oeste do Loire. São eles: Bannay, Ménétréol-sous-Sancerre, Saint-Satur, Thauvenay, Veaugues, Bué, Crézancy-en-Sancerre, Menetou-Râtel, Montigny, Sainte-Gemme-en-Sancerrois, Sancerre, Sury-en-Vaux, Verdigny e Vinon.

Atualmente atuam nesta região aproximadamente 285 vinicultores, produzindo cerca de 188 mil hectolitros. Isso equivalente a 23,4 milhões de garrafas ao ano. Em termos relativos, este volume é quase o dobro do produzido em Pouilly-Fumé e pouco abaixo da produção de Muscadet Sèvre et Maine. Da produção total, a Sauvignon Blanc responde por 83%, com os restantes 17% de Pinot Noir (11% tintos e 6% rosés). Estes números fazem de Sancerre é a segunda maior denominação de origem em termos de produção de vinhos brancos em todo o Vale do Loire.

Os mercados principais para os vinhos de Sancerre ficam no exterior, que absorve cerca de dois terços da produção (com destaque para os mercados dos EUA, Reino Unido, Bélgica e Canadá). Uma das conquistas importantes nas últimas décadas foi a busca de formas mais sustentáveis de cultivo dos vinhedos, com 22% sendo certificados orgânicos ou em processo de conversão e 29% com certificação HVE.

Principais vinhedos

Ao contrário da Borgonha, não existe classificação dos vinhedos em categorias hierárquicas em Sancerre. Isso não impede, porém, que alguns de seus principais vinhedos sejam reconhecidos pela sua capacidade de dar origem a vinhos de maior qualidade. Por conta da diversidade de solos, é comum dividi-los em três grupos.

Mapa de Sancerre e seus perfis de solo

Entre aqueles situados em solos de Terres Blanches, os destaques ficam com Les Monts Damnés e Le Cul de Beaujeu (ambos na aldeia de Chavignol), além de La Grande Côte (Amigny). Em solos Caillote, os mais prestigiados são Le Chêne Marchand, Petit Chemarin e Grand Chemarin (todos em Bué), e La Moussière (no vilarejo de Sancerre). Les Romains e Les Belles Dames ficam em evidência entre aqueles de solos Silex.

Vinhos

Refletindo a diversidade de seus solos, não há um estilo único de vinhos em Sancerre. Em geral, seus Sauvignon Blanc apresentam características comuns, como alta acidez e aromas vibrantes. Porém, os vinhos variam bastante de acordo com o solo onde são plantadas suas uvas. Os vinhos com maior estrutura e maior poder de evolução tendem a ser aqueles provenientes de Terres Blanches. Já aqueles com origem em Silex apresentam notas de pólvora mais presentes, com potencial médio de guarda.

Os vinhos brancos elaborados a partir de solos de Caillotte tendem a ser mais frutados e leves, com menor capacidade de evolução. Os tintos, por sua vez, são mais leves e vegetais que os Pinot Noir de regiões como a Côte d’Or. Porém, sua estrutura e poder de guarda também variam de acordo com o perfil de solos. Por fim, os rosés são leves e quase sempre mostram notas minerais e levemente vegetais ao lado de aromas e sabores frutados.

Produtores de destaque

Sancerre é uma denominação de origem com grande número de produtores de alta qualidade, que podem ser divididos de acordo com o vilarejo onde estão sediados. Em Bué, chamam a atenção Bailly-Reverdy, Daniel Crochet, François Crochet, Lucien Crochet, Domaine Merlin-Cherrier, Pierre Morin, Vincent Pinard, Dominique Roger (Domaine du Carrou) e Jean-Max Roger.

Entre os produtores baseados na aldeia de Chavignol, vale a pena conhecer os vinhos de Clos la Néore, François Cotat, Famille Bourgeois, Gérard Boulay, Hubert Brochard, Domaine Delaporte e Pierre Martin. Nos arredores de Chavignol, sobretudo com parcelas em Les Monts Damnés, estão Pascal Cotat, Paul Prieur, Pierre Prieur e Domaine Thomas-Labaille.

O vilarejo de Sancerre conta com Domaine Vacheron, Domaine Fouassier, Vincent Grall, Pascal Jolivet, Alphonse Mellot e Joseph Mellot. Já em Sury-en-Vaux, nomes como Vincent Gaudry, Julien et Clement Raimbault, Pascal et Nicolas Reverdy, Claude Riffault e Sébastien Riffault merecem atenção especial.

Já em outros vilarejos dentro da AOC, os principais destaques são Henry Natter (Montigny), Vignobles Berthier (Sainte-Gemme-en-Sancerrois), Domaine Laporte (Saint-Satur), Serge Laloue (Thauvenay), Roger et Didier Raimbault, Bernard Reverdy, Hippolyte Reverdy e Domaine Reverdy-Ducroux (Verdigny), além de Louis-Benjamin Dagueneau (anteriormente chamada Didier Dagueneau), Henry Pellé e Domaine Tinel-Blondele, sediados fora da denominação de origem.

Fontes: Loire Master Level Study Manual, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Cahier des Charges de L’appellation d’origine Sancerre; Loire Valley Wine Economic Report, Vins de Loire

Imagem: Bureau Interprofessionnel des Vins du Centre (BIVC) – Pierre Mérat

Mapas: Vins du Val de Loire, BIVC

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